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ALEGRIA, DECEPÇÃO...E OUTRAS EMOÇÕES


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Meus amigos, segue minha primeira contribuição a esta nova "sala" do fórum.

Trata-se de um texto, escrito há "alguns poucos" anos, sobre meu primeiro embate com um "peixe grande".

Espero que gostem.

Abraços!

 

 

 

ALEGRIA, DECEPÇÃO...E OUTRAS EMOÇÕES

 

 Carlos A. Vettorazzi

Piracicaba, dezembro de 1981

 

 

Como de costume, os primeiros raios de sol traziam consigo a movimentação geral na Pensão Moraes, na pequena cidade de Tesouro, no estado do Mato Grosso.

 

Após um ligeiro café-da-manhã, todos se voltavam para a aprontação das tralhas, iniciando mais um dia de pescaria.

 

O copo de café preto, fumegante, logo de manhãzinha, tem um poder extraordinário sobre meu organismo. O dia realmente só inicia, para mim, após o primeiro gole de café.

 

Ao sair da pensão encontrei meu pai, completando a gasolina do tanque do motor de popa. Geraldo, primo de meu pai e meu parceiro naquele dia, também já estava em pé, mas Tonho Boi, o piloteiro, ainda não havia dado as caras.

 

Faltava pouco para as seis e meia e, enquanto o pirangueiro não chegava, tratei de fazer uma checagem em meu equipamento, no que fui acompanhado pelo Geraldo.

 

Eu sentia que, finalmente, o dia tão sonhado havia chegado. Esperava ter a oportunidade de fisgar um grande peixe e dominá-lo com meu material predileto à época, vara e molinete, nesta minha primeira pescaria no Mato Grosso, mais precisamente no rio das Garças, afluente do famoso Araguaia.

 

Eu não havia feito aquela viagem, de quase mil e quinhentos quilômetros, para voltar para casa sem ter sentido o prazer de um duelo justo e esportivo com aquele peixe tão sonhado e esperado desde os tempos de infância.

 

Enfim o Tonho chegara, mas pediu-nos permissão para prestar ajuda a um grupo de pescadores que teimava, já há algum tempo, sem sucesso, em fazer funcionar o seu motor. É claro que não podíamos recusar, contanto que não demorasse muito, pois minha ansiedade já estava no limite.

 

Como o material já estava arrumado, aproveitei para adiantar o trabalho, carregando o tanque de combustível e parte da tralha para o barco. Meu pai e o Geraldo levaram o restante.

 

Não demorou muito para que os dois chegassem ao pequeno porto, próximo à ponte. Logo atrás vinha o Tonho Boi.

 

Nosso motor funcionou na primeira tentativa e a fumaça branca subiu aos ares, para logo em seguida dissipar-se. Geraldo e eu já estávamos acomodados em nosso banco. Com acenos e as últimas recomendações, meu pai, da margem, despediu-se de nós.

 

Agora, o ar frio da manhã parecia gelado de encontro a nossos rostos, obrigando-nos a baixar a aba do boné e a fechar bem a gola do casaco. Estávamos em meados de julho. Segurando a borda do bote com a mão direita, era até gostoso sentir aquela água morna do rio, contrastando com o ar gelado.

 

A descida do Garças, naquele trecho, era particularmente difícil, mas vencidas as cinco primeiras corredeiras, chamadas regionalmente de “travessões”, tornava-se mais tranquila.

 

Em uma curva do rio, após o quarto travessão, encontramos dois pescadores em um bote. Pescavam com linhadas de mão e já haviam fisgado dois pintados.

 

- Podem ir se preparando que, mais à frente, vamos parar para uma primeira tentativa, disse-nos lá da popa o Tonho.

 

Passado mais um travessão, o piloteiro foi diminuindo a aceleração do motor, até “matá-la” de vez. O bico do bote enterrou-se na areia da margem e, de pronto, desci para puxá-lo um pouco mais. Era uma pequena praia, com alguns metros de largura, terminando numa ponta que acompanhava, por curto trecho, um paredão alto de arenito. Esses locais são chamados por lá de “costelões”. São paredões verticais, muito altos, que existem em abundância na região, onde as águas do rio resvalam a grande velocidade. São pontos profundos e bons para a pesca de peixes de couro.

 

Eu ia ficar naquela praia, enquanto os dois desceriam com o bote um pouco mais, pescando sob o mesmo “costelão”, após a próxima curva, o que representava menos de cem metros.

 

Seguindo orientações do Tonho, cortei um pedaço de muçum, de aproximadamente um palmo, e o prendi ao anzol. Sangrando e ainda contorcendo-se, arremessei-o para o meio do rio. A linha acompanhou a correnteza e logo estava esticada, quase encostada ao paredão.

 

-É aí mesmo que ela tem que ficar, disse-me o Tonho.

 

-Fique atento para a arrancada do peixe. O pintado normalmente dá duas batidas e, na terceira, dispara com a isca na boca. Aí é fisgar e não se afobar. Não tenha pressa em trazer o peixe.

 

Logo eu estava só.

 

Fazia muito frio, pois o sol ainda não havia batido naquele lado do rio.

 

Numa árvore próxima, um tucano vocalizava e a resposta ao seu chamado vinha do outro lado do rio. Que ave bonita!

 

Na areia, perto dos meus pés, o restante do muçum ainda se contorcia, manchando de vermelho, com seu sangue, a areia da praia.

 

Comecei a bater os dentes, mas confesso não saber ao certo se era pelo frio ou por aquela pontinha de nervosismo ante o imprevisto, que se inicia no “toco do rabo” e vai até o último fio de cabelo, marcando seu trajeto pela espinha com um arrepio danado.

 

Passaram-se talvez uns dez minutos e a linha permanecia imóvel. A descrença chegava devagar. Recolhi a linha e examinei a isca. Tudo certo. Ela ainda se contorcia um pouco, embora o sangue já tivesse sido lavado.

 

Fiz novo arremesso e esperei que a linha chegasse ao lugar certo.

 

O tucano atendeu ao chamado do companheiro, na outra margem, e com seu jeito característico de voar – três batidas de asa e uma planada; mais três batidas e nova planada – atravessou o rio.

 

Olhei para baixo. Meus calçados estavam afundados na areia úmida e eu já podia sentir as meias molhadas.

 

Quando mudava de posição, senti o primeiro tranco na linha e antes que minha mente se reorganizasse e meu corpo se preparasse veio o segundo tranco e logo em seguida senti-me arrastado, tendo que dar um passo à frente para restabelecer o equilíbrio. O que fazer agora? O peixe estava lá. Dalí para frente o negócio era comigo.

 

O receio de a linha partir logo acabou, pois soltei um pouco a fricção do molinete, deixando que o peixe levasse a linha que pudesse.

 

De início ele correu muito, mas fui fechando aos poucos a fricção, até que a linha parou de correr e a vara vergou, formando um arco com a fisgada que apliquei.

 

A pressão da correnteza fez com que o peixe aflorasse dezenas de metros à frente, tirando a cabeça fora d’água, como que querendo cuspir o anzol que o estava machucando. Nesse momento é que percebi a grandiosidade da situação. O coração estava “a mil”. O pintado não era pequeno não! Devia passar dos dez quilos!

 

Coisas as mais diversas começaram a passar por minha mente.

 

Sentia-me um intruso, incomodando aquele belo animal em seu ambiente.

 

Também senti pena do peixe que, no momento em que se mostrou, parecia tomado de muita ira, como se isso fosse possível.

 

Mas eu não podia fazer mais nada a não ser tentar trazê-lo para mim, pois era isso que meu instinto de pescador ordenava. E, assim, em movimentos ritmados com a vara, entremeados com o recolhimento da linha, fui trazendo o peixe que, até aquele momento, tentava fugir rio abaixo.

 

Repentinamente senti a linha afrouxar e notei que ele tentava uma carga, agora rio acima, em minha direção!

 

Enrolei a linha o mais rápido que pude, pois havia aprendido que não devia deixá-la frouxa, sob pena de o peixe conseguir livrar-se do anzol. Senti, então, que ele já estava cansado e com movimentos mais calmos. Continuei enrolando a linha.

 

Já antegozava o momento de exibi-lo ao meu pai e ao meu avô, que também estava nessa pescaria.

 

O peixe estava agora bem próximo a mim e o problema, então, passou a ser como tirá-lo da água, pois não tinha comigo um bicheiro ou um puçá.

 

Percebi que podia dirigi-lo de encontro à vala que havia entre o paredão e a ponta de praia onde me encontrava. Ali, a profundidade tornava-se gradativamente menor e, com calma, poderia trazê-lo no seco.

 

Com esse pensamento na cabeça fui dirigindo o peixe até a entrada da vala.

 

Estava dando tudo certo. Ele estava calmo e, aparentemente, entregue, pois até parecia que se dirigia sozinho até o canal.

Subitamente meus pensamentos foram interrompidos.

 

Parecia que a vara queria fugir-me das mãos.

 

A água, espirrada pelo violento golpe do peixe, molhou-me o corpo quase todo.

 

O restante foi uma sensação de...vazio. O peixe havia conseguido escapar!

 

Por um tempo fiquei sem entender nada, querendo dizer “Isso não vale! Volta aqui e vamos começar tudo de novo!”.

 

Parado, ali, com a vara na mão e a água respingando de meu rosto, só depois de vários segundos é que consegui proferir o primeiro palavrão!

 

Enrolei o pouco de linha que, até então, me separava do peixe, querendo não acreditar que o anzol voltaria “limpo”.

 

Contudo, passados os minutos iniciais de raiva, os pensamentos alegres voltaram. Afinal de contas, não era a sensação da briga com um peixe grande que eu queria sentir? Pois então, isso eu tive...e com uma intensidade até então inimaginável! A “briga” havia sido fantástica. Inegavelmente.

 

Naquele mesmo dia consegui capturar vários peixes, inclusive um pintado de bom tamanho, talvez até maior do que aquele perdido. Mas, o que realmente marcou minha alma de pescador, de forma que nunca conseguirei esquecer, foi esse encontro com meu primeiro “peixe grande”.

 

 

Obs.: Pescaria realizada no rio das Garças, MT, em julho de 1981. Equipamento utilizado: vara de fibra de vidro Mazzaferro 136, molinete Paoli, linha de nylon 0,50mm, anzol Mustad 8/0, iscado com pedaço de muçum.

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Dan Carlos Brown Vettorazzi.

 

mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre::

 

Melhor de todos os tempos, Carlos. Isso que é sensibilidade e o despertar de um amor à primeira esticada de linha.

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Grande Carlos,

 

Uma verdadeira narrativa, repleta de sensibilidade e destreza no contar dos fatos !

 

Esse tipo de "relato" é tudo que se espera ver (e ler) aqui no Vintage !

 

Muito legal compartilhar suas percepções e experiências ! Parabéns !  ::tudo::

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showww, imagina nessa época o tanto de peixe que tinha nesse rio... excelente relato, me senti dentro dele rsrsrs

pescaria e sem duvida uma bençao divina, para pessoas que tem o privilegio de pescar por esses rios do mundo...

 

parabéns...

 

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Meu grande amigo Carlos!

 

Não poderia esperar outra coisa de você senão essas belas, sensíveis e emocionantes palavras.

 

Tem tempo que não nos falamos, desde novembro de 2014 quando estávamos naquela imensidão do Rio Aracá, no solar do Poraquê, juntamente com Edu, Ramon, Arno e Arildo. Apesar do rio cheio, fizemos boas amizades.

 

Grande abraço.

 

Rodrigo Xingu

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Que bela narrativa Carlos!! Me senti pescando e vivenciando cada momento. A sensação de fisgar o primeiro peixão é marcante e inesquecível, obrigado por compartilhar.

 

 

Grande abraço

 

 

Obrigado Law.

Sem dúvida, é inesquecível.

 

Grande abraço

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Dan Carlos Brown Vettorazzi.

 

mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre:: mestre::

 

Melhor de todos os tempos, Carlos. Isso que é sensibilidade e o despertar de um amor à primeira esticada de linha.

 

 

Marcel,

Naquela época, cada pescaria dessa era muito esperada (uma por ano), portanto, cada fisgada tinha um sabor especial. A primeira então teve ainda esse ingrediente, que colaborou para torná-la inesquecível.

Obrigado mesmo e um grande abraço!

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Grande Carlos,

 

Uma verdadeira narrativa, repleta de sensibilidade e destreza no contar dos fatos !

 

Esse tipo de "relato" é tudo que se espera ver (e ler) aqui no Vintage !

 

Muito legal compartilhar suas percepções e experiências ! Parabéns !  ::tudo::

 

 

Kid, quando anunciou a sala Vintage fiquei contente, pois enfim poderia compartilhar esses textos mais antigos

.

Agora fiquei mais contente ainda em saber que era isso que você esperava.

 

Estava um tanto temeroso sobre publicar um relato sem fotos. Não acreditava que teria boa recepção, uma vez que o pessoal hoje em dia gosta é de ver muitas imagens, mas fiquei surpreso com o retorno.

 

Obrigado pela oportunidade

 

Grande abraço!

 

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"Decepção" ganhou outro significado. mestre::

 

Pode se chamar O COMEÇO DE TUDO.

 

:amigo:

 

 

Verdade Rodrigo, a decepção logo deu lugar a outros sentimentos.

Agora, quanto ao título poder se chamar O começo de tudo, aí eu teria que escrever sobre os lambaris e bagrinhos fisgados no ribeirão, no sítio de meus avós, antes mesmo de ir à escola rsrsrs

 

Grande abraço!

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É...essa sala melhorou muito o fórum...

Parabéns amigo, bela história.

A gente lê, e acaba gostando ainda mais de pescar...!

 

 

Rafael, embora suspeito, pois gosto de relatos antigos, tenho de concordar com você.

 

Esses causos fazem parte de uma história, que continua hoje em dia.

 

E quem gosta da pesca faz bom proveito deles.

 

Grande abraço!

 

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Sensacional a Narrativa, creio que todos temos um peixão ( ou peixinho) na lembrança do início das pescarias. Sua descrição dos fatos, temporalidade são dignos da série " Contos do FTB".

Abc

 

 

É verdade Olímpio, todos temos o peixe que nos marcou, ou os peixes.

Esse espaço no fórum é ideal para colocarmos nossa histórias.

Espero ler sobre os peixes marcantes de outros colegas também.

 

Obrigado e um abraço!

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Excelente  narrativa, viajei no tempo e lembrei também dos bons momentos vividos na pesca.

Realmente o tempo passa e nem sentimos....

 

 

Gilson, gostaria muito de ler sobre esses seus bons momentos na pesca. Tenho certeza que tem muitas histórias excelentes sobre a pesca de bass e outros peixes.

Que tal partilhá-las?

 

Grande abraço!

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