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Uma Comunidade Amazônica


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Nem sei se este é o local ( ou melhor local ) para compartilhar essa experiência que tive com os amigos, mas tenho certeza de que - se for o caso - o tópico será devidamente remanejado para local adequado ! Na verdade, o relato a seguir não é de "pescaria", mas mesmo assim, é como se fosse, já que é oriundo de um momento da pescaria, quando o céu parecia ter se zangado com o calor reinante, e como desagrado, fez cair uma bela chuva, com tudo o que tinha de direito ( ainda consegui fotografar as nuvens chegando )...

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Estávamos em busca de abrigo, antes mesmo que as primeiras gotas ( já dá para imaginar o tamanho delas ) se fizessem presentes acompanhadas por um vento que fez com que o leito sempre majestoso do rio Negro se encapelasse, pontilhando de espuma as ondas que se formaram em seu leito escuro ! Tentamos nos abrigar com capas plásticas, mas não deu nem para começo... Foi mesmo o tempo de proteger as cameras fotográficas e outras coisas que não poderiam se molhar, e só... "Acocorado" sobre a cadeira do bote, quase em posição fetal, tentando proteger a cabeça, rosto e olhos com a "frágil" aba do boné de pesca, sob os sacolejos do bote impulsionados pelo motor de 25 Hp, que se mantinha decidido a singrar aquelas "águas mexidas" ! E tome tombo com o "subir e abaixar" do bote caindo na água... Sob o comando seguro do piloteiro Dinho, conseguimos alcançar uma ponta por trás de uma "ilha", que aliás seria o nosso destino naquele momento, pois segundo ele, quando a chuva chega, só se abrigando... pois se quiser desafiar "o que vem do céu", é preciso estar fora do seu normal ( 1° aprendizado do dia - o respeito do ribeirinho aos efeitos provocados pela natureza ! "Por que enfrentá-la, se ela é passageira...? " palavras do "mestre Dinho"... ). Nessa hora em que encostamos o bote numa pequena praia, é que pude observar se tratar de uma comunidade local ! Nessa hora não havia uma só parte do meu corpo que não estivesse encharcada ! Como pegar uma máquina fotográfica ? Depois faria isso... ( ficou claro que isso terminou não acontecendo... lógico ! A velha conversa de "deixar para depois... " ).

O acesso era através de uma bela e rústica escada de madeira, onde pude contar mais de 25 degraus, que estimularam - ainda mais - a já dominante preguiça gerada por não estar pescando... Fiquei de subir depois, e me ajeitei para suportar a chuva, que em momento algum dava mostras de arrefecimento... Indagado a respeito, Dinho olhou o horizonte, e disse que demoraria menos de uma hora, e que depois ainda iríamos pescar... ( "quanta gentileza, pensei... " o pessoal daqui é otimista ! ). Eles ( Dinho e meu companheiro de bote - Boto ) seguiram escada acima, e fiquei observando o local onde estava ! Passei nisso uns quinze minutos, totalmente absorto e "desligado" do que acontecia a meu redor, até que notei que tinha companhia ! A chuva já havia diminuído, e embora ainda "molhasse", não era nem sombra do que nos trouxera até ali ! Próximo do bote em que estava, apareceu uma pequena canoa ( piroga ) com duas crianças ! Verdadeiros curumins ! Cabelos lisos pretos, olhos de jaboticaba de um brilho absolutamente inesquecível ! Vinham remando próximos da margem, examinando que "figura" era aquela cheia de roupas molhadas que se erguia em frente delas... Claro que pararam ao meu sinal ! Eram Andreia e Vagner, irmãos de uma família de sete, que viviam naquela comunidade ! Vou ver o que consigo lembrar para transcrever de nossa conversa !

A comunidade era formada por apenas 7 casas ! Na verdade, sete famílias de moradores, com avós, filhos, netos e bisnetos, ou sejam, 4 gerações ! Menos de 50 pessoas no total ! Depois que nos apresentamos e nos acostumamos a não estranhar as realidades em que vivíamos, os meninos foram absolutamente fantásticos nas suas respostas e formas de sorrir e interagir ! Indagados sobre "escola", até por entender que conhecimento e cultura estão sempre interligados, fiquei maravilhado em saber que eles tinham uma professora ( que vinha de fora - outra comunidade próxima... a 3 horas de motor de rabeta ), fazer uma sala onde se congregavam as mais diversas idades, mas que cada qual tinha sua assistência diferenciada ! Naturalmente que também outros "alunos" ( de outras comunidades "próximas" ) vinham para essas "aulas" ! As aulas não tinham hora nem para começar, muito menos para terminar... ficava dependendo do aprendizado e do interesse dos participantes ! E como fazia quando alguém faltava ? Lógico que essa foi a pergunta que lhes fiz, e em resposta fui informado que isso não tinha qualquer importância pois "cada qual tinha que saber de suas obrigações, inclusive de estudos", e a professora ( "a mestra" segundo eles... ) saberia repor as ausências com um pouco mais de trabalho nos respectivos retornos... ( 2º aprendizado do dia - Existe a consciência do respectivo dever e o que deles se espera numa comunidade como essa, onde cada um tem seu papel definido... e o mais interessante, SEM COBRANÇAS ! ).

O interrogatório continuou, e antes de mudar de assunto ( escola ) permitam-me dizer que o local contava com um belo campo de futebol ( o jogo era de meninos e meninas, indistintamente... ), assim como um de volei ( acreditem se quiserem ! ). Os jogos eram nas sexta feiras ( com o comando da "mestra" ) e aos domingos, após a missa ! Pensaram que não haveria uma igrejinha no local ? Agora vem o mais surpreendente ! Eles tem um campeonato de futebol envolvendo outras comunidades não necessariamente próximas ( cheguei a conclusão que a questão das "distâncias" são justificativas que nos damos... ). Jogam de 15 em 15 dias aos domingos depois do almoço ! Mas vamos em frente...

Sobre a "vila", as casas todas simples ( terminei enfrentando "a escada", mas não levei a máquina... é sempre assim, justo onde mais necessitava de imagens... ), mas de uma limpeza ímpar, varridas e asseadas, como todas as casas deviam ser ! As pessoas tinham um aspecto de cansaço, mas saudável, embora calejados pela vida que levavam... Mesmo assim, descobri um Posto Médico, onde um enfermeiro vinha abrí-lo uma vez por semana, e um médico passava ( em ronda - claro que de barco ! ) uma vez por mês ! Nos casos mais graves, a saída que tinham era remoção para a cidade mais próxima ( Santa Isabel do Rio Negro ) distante dali 5 horas de rabeta... ( talvez umas 3 de motor 25 Hp ). Quase me esquecia de dizer que eles tinham luz ! Um motor diesel, que ligava das 18:00 h às 22:00 h, salvo quando alguém pagava pelo diesel adicional ( coisa que não acontecia com frequência ) ! Mantinham uma pequena horta para os temperos mais costumeiros ( cebolinha, tomate, salsa, coentro e outros que não são meus conhecidos... ) e viviam basicamente do extrativismo ! Sobre isso, conversei com meus já amigos Andreia ( 11 ) e Wagner ( 8 ), que pareciam ter - pelo menos - 3 anos a menos cada um !

Embora não fossem índios, certamente a miscigenação daquele povo ribeirinho trazia o autêntico sangue brasileiro ! Dificilmente ficavam doentes, a despeito da precariedade de medicações existente ! Eram responsáveis pela pesca e limpeza de setores da comunidade ! Quanto maior ( de idade ), mais atribuições... A parte da pesca era feita basicamente com pequenas redes, colocadas nas saídas de igarapés, ou em locais onde se dava a passagem de peixes ! É óbvio que a conversa seguiu por aí... O peixe mais apreciado pela comunidade ( o pescado era repartido ) era o jaraqui, o pacu, as piranhas, tambaquis, seguidos de perto pelos piaús, acarás, e outros "menos nobres" ! Indagados o porque da discriminação quanto ao tucunarés, a resposta foi simples ! "Eles são muito espertos para caírem em nossas redes" ! Ainda no mesmo tema, quiz saber sobre "fartura", e eles de forma absolutamente tranquila me disseram que tinha dias em que pegavam mais que outros, ou até mesmo não pegavam ( rio alto ), mas que sempre só levavam aquilo que podia consumir, soltando os demais... ( 3º aprendizado - A pressão não é feita quando a "ganância" não se apresenta, e o respeito a natureza é algo bem mais natural do que "o que pregamos" ! ). Com relação a "caça", ela também existia, só que praticada esporadicamente pelos homens da aldeia, dois dos quais - PASMEM MEUS AMIGOS - ficais do Ibama ! Eles existem sim ! E mais que isso, estão sendo recrutados nos locais onde podem ter algum tipo de interferência ! Um deles ( o que "já tem carteirinha" ) ganha um salário mínimo mensal e se apresenta ao Ibama ( escritório de Barcelos ) uma vez por mês ! esperanças portanto de que isso ainda possa servir de alento aos que prezam pela natureza e floresta amazônica ! Sua principal função ( na região ) é verificar a atuação dos pescadores profissionais ( comerciantes ) e principalmente os madeireiros que possam atuar por aquelas bandas ! É impressionante a capacidade dessas pessoas se comunicarem e saberem dos fatos por ali ! Todos parecem pertencer a uma "mesma família", pois se conhecem ao se encontrarem...

Por fim, até pelo tamanho do "relato", já era hora de partir ! A chuva havia passado, a barra do horizonte já apresentava um final de dia estimulante a uns "tucuninhas", de modo que era hora de seguir em frente ! Nas despedidas de meus "novos" amigos, a doação de algumas iscas artificiais ( Wagner disse que era bom com elas... ), além de latas de refrigerante geladas, afinal, aquilo era uma raridade no local ! Somente então foi que soube que as pessoas com quem estivera a tarde, eram a família de Dinho ! Na verdade não encontramos a mãe dele ( estava "fora", pescando aos 67 anos... ), mas estivemos com a avó, Dona Chica, com as rugas e experiência de seus 81 anos, ainda ativos, e olhos cheios de emoção pelo re-encontro inesperado do neto, que também estava perto de virar avô ! A simplicidade com que essas coisas acontecem na região são as que nos permitem manter o sonho de tornar esse um grande País !

Fomos embora, com o pensamento ligado nas coisas que vimos e naquelas que entendemos sem que tenham sido ditas ! Em momento algum consegui perceber em qualquer dos muitos olhos que nos viram com surpresa, qualquer rastro de desejo, quer das brilhantes iscas, quer das varas e molinetes tecnologicamente modernos, quer até da "pseudo" boa vida que levávamos ! Conseguimos - no entanto - ver uma beleza ímpar no comportamento dessa gente, altiva sem contudo significar se sentir "inferior" ( como muita gente alega ser... nesse nosso mundo tão confuso ! ). Gente que gosta e quer partilhar, mesmo tendo tão pouco de pessoal, mas que se acostumou a pensar ( e funcionar ) no coletivo ! Gente que faz um Brasil diferente, muito mais verdadeiro, muito mais autêntico, e que pede tão pouco para simplesmente ser o que é ! O pleito parece ser ingênuo, mas é carregado de muita sabedoria, pois até eles já descobriram que por trás das ofertas fáceis, existe a cobiça, e isso, é algo rejeitado por todos... Com o gerador, veio a televisão, e com ela, as "novelas"... Isso sim, é a verdadeira "Caravana Holliday" ( para quem é do tempo desse filme de Cacá Diegues... ). Para não ficar assim tão nostálgico esse final, a reativação ( com muito atraso ) da máquina fotográfica, para um "fecho" de uma tarde toda especial.... E depois ainda pretendem achar que Deus não é brasileiro ! :P

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  • 6 meses depois...

Teve uma vez que eu fiz um curso no Rio De Janeiro/RJ; ao final do curso me senti aliviado por não ter de voltar ao Rio... Sabe porquê? Eu estava cansado daquele pessoal metido à besta... Gente que compra uma calça jeans por R$ 200,00; e acha que tá fazendo vantagem... se a mesma calça custar R$ 1000,00, melhor ainda... (todas, ou a grande maioria destas calças, são produzidas aqui na minha cidade e custam entre R$ 20,00 e 60,00...) Lamentável...

De quê adianta saber comer com 10 talheres se você for esnobe? Quer alguém mais mal-educado que um esnobe?

Educação é o que se vê no interior! Gente que mal foi apresentada à você; e que já está preocupada com a sua saúde, com seu bem-estar, se você está feliz...

Pessoas "simples" geralmente trazem consigo uma enorme sabedoria, o saber que as pessoas são mais importantes que as coisas! O pessoal da cidade tem muito que aprender com elas...

Um abraço a todos! Obrigado, Kid M!

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Grande Moacyr,

Suas palavras são verdadeiras, embora possam estar sobrecarregadas pela "generalização" ! Os valores de cada lugar sempre representarão a imagem de sua população, pois é disso que é feita a cultura ! Convém lembrar também, que nem todos seguem uma mesma cartilha, ficando muitas vezes "invisíveis" diante dos "conceitos dominantes"...

Da mesma forma que existe essa "tendência à esnobação" pelo RJ, existe também um enorme trabalho ( silencioso ) nas favelas, e locais desassistidos, onde "o povo" cuida de sua própria gente ! Não me refiro a programas de igreja, ou de Ong's, e sim de gente que se vira para manter seus valores vivos, a despeito de todo o incentivo ao consumismo e violência que norteiam as grandes cidades...

E se o RJ ainda não explodiu, deve-se ao humor e a forma de encarar esses problemas cotidianos enfrentados ! A "ilusão" ( e "esnobação" faz parte dela... ) cresce com muito mais vigor num "terreno desses"...

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  • 4 anos depois...

Poxa, acabei desenterrando o tópico...

Mas Kid, no meio de tantas idas e vindas, tantos atropelos, stress e tudo o que é inerente a uma cidade grande e, apesar de toda a conveniência, às vezes parece interessante essa vida pacata da selva...

Parabéns Kid, como sempre um relato com grande propriedade, sabedoria e sobretudo percepção!

Abraço

Ah sim, e sobre o Rio de janeiro deixo apenas uma frase: cidade maravilhosa!!!!!!

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Desenterrado ou não, agradeço. Esse relato não tinha lido e é magnífico.

Fatos de uma pescaria, que no final, o peixe não importa tanto.

Grande sensibilidade do Kid e aborda o que me preocupa muito: estamos perdendo nosso conceitos e valores. Valores como o respeito, a responsabilidade e obrigações. Dias destes li a frase: ensina ao teu filho o valor das coisas, não o seu preço.

Grande Kid. Muito obrigado pela viagem!

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E pensar que esse texto já tem 6 anos de postado...

Foi ótimo relê-lo, e mais ainda rever algumas das coisas que ainda são da maior importância na nossa vida !

arrow:: Voltei por lá depois dessa experiência, mas não mais encontrei os dois meninos...

Melhor assim, pois "coisas" como essas não precisam de qualquer continuidade ! mestre::

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Grande Kid M !!

Li com atenção seu belo texto, realmente é uma viagem ao nosso interior "digo" o nosso "eu". Seu relato detalhado sobre sua experiência nos faz sentir como estivéssemos ali, naquele lugar. Acho que de todas as formas que pudéssemos imaginar não conseguiríamos transformar isso em palavras tão bem definidas. PARABÉNS!!

palmas::

Grande abraço!

:amigo:

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Prezado Kid

Grande pescaria! De paisagem, de gente, de vida, ou seja, em uma viagem destas não se pode ir só pelo peixe ou pelo recorde; seu relato me fez lembrar os do saudoso Francisco de Barros Junior na série Caçando e Pescando Por Todo Brasil. Parabéns!

Em outubro, se Deus permitir, irei conhecer este Brasil, espero aproveitá-lo tanto quanto.

Abrç.

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  • 4 meses depois...

Boa Tarde,

Amigo Kid,

Este relato tem que estar na pagina de abertura do site, para que todos possam ler, meditar e compreender o significado da vida na forma simples e verdadeira.

O relato so podia partir de voce.

Voce, além de grande pescador, é uma pessoa que capta a mensagem de vida.

Parabens...

Estou indo na proxima semana ou melhor retornando mais uma vez.

abraço

Shoji

Shoji

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Amigos,

Volta e meia "desenterram" coisas mais antigas que precisam sempre serem vistas e lembradas... viola::

Obrigado (mais uma vez) pela generosidade dos comentários feitos... vergonha::

arrow:: Insisto que numa pescaria amazônica, peixe nada mais é que um simples detalhe, quase sempre pouco significativo... doutor::

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